10.5.06

Cidades Ocasionais, Post-it City e usos do espaço público do Porto

“…basta pensar no que se transforma quando utilizamos literalmente um post-it: sobre um texto prévio (a cidade) impomos um sinal que prioriza uma ordem distinta da inicial, no entanto, este sinal responde apenas a um interesse subjectivo e, por isso, também é uma marca efémera, sem vontade de permanecer ou impor-se.” Martí Peran

O projecto “CIUDADES OCASIONALES. Post-it City y otras formas de temporalidad” é um desafio lançado internacionalmente pelo Centro de Arte de Santa Mónica a diversos centros de arte e comissários independentes para criação de um centro de documentação, em formato vídeo, que recolhe e regista um amplo conjunto de fenómenos e episódios em diversas cidades do mundo. O projecto “Post-it City” visa registar fenómenos, acções e eventos que têm lugar no espaço público, subvertendo-o diariamente. Os documentos-vídeo reunidos em todo o mundo serão compilados e expostos no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, no Inverno de 2007, confrontando diferentes usos e acções no espaço público em cidades tão distantes como Telavive, São Paulo, Buenos Aires ou México D. F.. Serão documentadas duas cidades portuguesas: Porto e Lisboa.

O conceito Post-it City, como concebido por Giovanni La Varra e apresentado por Martí Peran, traduz-se num conjunto de fenómenos temporários que ocorrem casualmente no espaço público das cidades, segundo acções individuais ou de grupos informais. As Post-it Cities rompem com a ordem, a lei e as normativas urbanas, desobedecendo-lhes ou aproveitando as suas falhas, denunciando a imposição, sempre como acção crítica, ainda que não explícita.

Consideremos os dois conceitos com que Martí Peran, o comissário geral do projecto, refere a disjuntiva entre a cidade construída - sky line, de carácter estático, - e o contexto de onde emergem os modos de vida - o background dinâmico: “sky line é a cidade-contentor, o envoltório sonhado pelas estruturas estabelecidas e do qual se deduz a imagem da cidade, aquela que a permite consumir apenas ao nível postal. Por sua vez, o background é todo o conjunto de realidades informais e dinâmicas reais em constante mutação, adaptando-se e trasladando-se continuamente, denotando um uso real do espaço urbano, muitas vezes de um modo explicitamente crítico com os preceitos impostos pelo sky line
[1].

O background do Porto é um campo fértil, povoado por fenómenos informais maioritariamente relacionados com a compatibilização pacífica entre o espaço urbano e a manutenção de usos e hábitos tradicionais, sendo raramente operações críticas dirigidas às políticas urbanas ou ao controle do espaço público. No espaço público do Porto diversas ocupações temporárias, actividades de grupos, e de minorias, se posicionam nos limites da legalidade, são soluções criativas e subversivas, embora dissimuladas ou não explícitas, que questionam a regulamentação e contestando a imagem da cidade.

Com origem em actividades lúdicas, tão tradicionais quanto ilícitas, alguns colectivos informais criam convivências inesperadas e episódicas. O Jardim de S. Lázaro, central e adjacente à Biblioteca Municipal e à FBAUP, acolhe diversas actividades, complementares, geradoras de circulação e economia local. No interior do recinto público, reúnem-se grupos de homens idosos trazendo mesas de apostas e jogos de cartas, formando um pequeno casino a céu aberto, complementado pela prostituição que ronda o recinto e se aloja nos edifícios da praça. Este “casino” assemelha-se a um outro, no recinto do Castelo de S. João da Foz, visível e integrado nas muralhas tuteladas pelo Instituto de Defesa nacional. Estes “casinos” são locais de socialização, de encontro e debate, estão localizados em praças e jardins públicos sendo porém constituídos por grupos com regras e funcionamento próprio.

As primeiras praças e superfícies planas, recentemente introduzidas, permitem novas formas de apropriação do espaço público, com usos que os espaços mais hierarquizados não permitiam acolher. O Campo dos Mártires da Liberdade, em frente da Cadeia da Relação, tornou-se num campo de futebol informal, com balizas improvisadas a partir de pedras do mobiliário urbano desenhado na reconversão urbana. Aos fins de tarde e dias festivos é local de encontro de grupos organizados que disputam partidas. Este contestado uso informal, que “danifica” o recente património construído, foi recentemente admitido e institucionalizado pela administração local, que promove campeonatos de futsal em campos insufláveis que aí monta aos fins-de-semana. Também a praça da Casa da Música deu visibilidade à comunidade skater do Porto, até agora dispersa, que apropriou a zona e aí se encontra para explora as superfícies lisas da plataforma e das rampas da base do edifício, conferindo um contestado uso alternativo ao empedrado travertino, dedicado à alta cultura.

Um “Post-it” visível, subversivo e com presença cada vez maior na paisagem portuense é o fenómeno “réplicas”, um grafitti que se repete acompanhado de um número de telefone, inscrito em sinalética, mobiliário urbano e suportes públicos: sinais de trânsito, postes de electricidade, paragens de autocarro, contentores do lixo e postos eléctricos. “Réplicas” respeita o privado e usa estritamente o público, como suporte publicitário, levando ao limite a ideia de “publicidade”.

Estes fenómenos denunciam a desadequação da cidade desenhada aos hábitos e práticas dos seus habitantes, e a progressiva imposição de normas dissuasoras do uso dos espaços públicos para fins não produtivos, legais ou significativamente simbólicos. Como refere Peran, “a cidade contemporânea não nasce da arquitectura mas do uso contínuo, versátil e corrosivo, do arquitectónico. É nesta perspectiva que parece lícito afirmar que a verdadeira cidade nasce depois da arquitectura.”
[2]

As Post-it Cities que os alunos da FBAUP documentaram durante a primavera de 2006 são actividades de carácter efémero, acções no espaço público, grafismos publicitários, percursos desconhecidos, tradições recentes e o uso quotidiano da cidade, aludindo a persistência de um uso reivindicativo do espaço público, que, ainda que não documentando desobediência activa, nem acções políticas civis, veiculam conteúdos críticos, referindo a inconsciente manipulação quotidiana da cidade…

Inês Moreira [Plano 21]

[1] e [2] Martí Peran – After Architecture – ver www.ciutatsocasionals.net